G𝐄𝐒𝐓Ã𝐎 𝐃𝐀 𝐌𝐄𝐃𝐈𝐀𝐓𝐄𝐂𝐀 𝐀𝐁𝐄𝐋 𝐀𝐁𝐑𝐀Ã𝐎 𝐄𝐍𝐓𝐑𝐄𝐆𝐔𝐄 𝐀𝐎 𝐆𝐎𝐕𝐄𝐑𝐍𝐎 𝐃𝐀 𝐏𝐑𝐎𝐕Í𝐍𝐂𝐈𝐀 𝐃𝐎 𝐁𝐈É
31-10-2024
Luanda - Maria Celestina Fernandes é uma escritora que dispensa apresentações no mercado literário infantil e juvenil angolano, pois é das poucas que dividem o tempo com os menores, dando-lhes manancial de informações, através de livros nos quais aborda variados temas, com realce para os aspectos socioculturais e ambientais do país: tradições, mitos, usos e costumes, fauna, flora, belezas naturais, entre outros. , (Por Venceslau Mateus)
Autora de mais de uma dezena de obras, a escritora fala, em entrevista à Angop, do mercado livreiro, do seu dia-a-dia no mundo dos pequeninos e das motivações para continuar a escrever para crianças.
Angop: Publicou, recentemente, "Os Padrinhos da Nazarena", uma obra marcada por temas como a guerra, a exploração, a infidelidade, a infertilidade, a discriminação, a adopção, o preconceito e o racismo. Quem tem acompanhado o seu trabalho vai encontrar aqui uma grande viragem?
Maria Celestina Fernandes (MCF) – O livro “Os Padrinhos da Nazarena” é o meu terceiro romance. Já tenho no mercado “Os Panos Brancos e Amuxiluanda”. Porém, o meu compromisso com as crianças é eterno. Enquanto tiver forças e imaginação, vou continuar a escrever para as novas gerações. É um trabalho ao qual me dedico com amor, paixão (…).
Angop: Quem lê Maria Celestina Fernandes encontra, nas suas obras, uma espécie de toque mágico, um tónico que cativa e incentiva os leitores a continuarem a meditar. Onde vai buscar a inspiração para escrever?
MCF - A inspiração partiu de crianças, que são os meus próprios filhos. Quando eram pequenos, eu lia para eles e, assim, incentivava-os também a gostar de ler desde muito cedo. Comentávamos depois as leituras, até que um dia me decidi a escrever algo para eles. A experiência foi bonita, e foi muito surpreendente a forma como receberam a invenção da mãe. Não só adoraram, mas também pediram que escrevesse outra estória e, a partir dali, iniciei a minha aventura pelo mundo da literatura, particularmente na vertente infantil. Escrevi o primeiro conto, o segundo e, por eles, se possível fosse, apresentar-lhes-ia um por dia.
A determinada altura, decidi-me a mostrar às outras pessoas o que fazia, sendo uma delas o escritor António Jacinto. Ele recebeu os manuscritos, leu-os e gostou. E, antes mesmo de me dar a conhecer, entregou os textos à UEA, com a recomendação de publicação. A mim, endereçou uma linda e incentivadora missiva, dando-me conta da iniciativa que havia tomado. A verdade é que tive de esperar sete anos para ver publicado o meu primeiro livro “A Borboleta Cor de Ouro”, mas, apesar da longa espera pela publicação, não me desanimei nem me desmotivei. Como já tinha o “bichinho” da escrita entranhado, continuei passando para o papel as minhas ideias. Na literatura, a paciência, a resiliência e a pesquisa são virtudes que nos podem levar a altos voos e, para mim, ajudaram-me a crescer e a produzir cada vez mais e melhor para as crianças, tendo sempre como leitores primários e críticos literários os meus filhos.
Alguns dos textos produzidos naquela altura continuam adormecidos, talvez um dia os reveja e venham a público ou talvez não. Como referi, tudo partiu de uma mera brincadeira, um desejo de presentear os filhos com algo de novo, estórias com um conteúdo que os elucidasse sobre questões voltadas para a nossa rica Angola. Estávamos no início da década de 80, numa época em que as crianças que tinham acesso ao livro apenas liam obras de escritores estrangeiros, cujas narrações pouco ou nada tinham a ver com a nossa realidade. Eu transmitia-lhes conhecimentos da terra, povos e cultura, de modo que tivessem a ideia real do seu país nas mais variadas ópticas. Sou jurista de profissão, hoje já reformada do BNA, e, actualmente, administro um empreendimento familiar, mas vou encontrando algum tempo para escrever, pois não há como desistir.
Angop: Como caracteriza o estado actual da literatura infantil angolana?
MCF- A literatura infantil angolana já teve momentos altos. Na década de 80, o mercado era “inundado” regularmente de vários títulos, em grandes tiragens. Gabriela Antunes, Cremilda de Lima, Dario de Melo, Octaviano Correia, só para citar, tiveram a feliz iniciativa de publicar livros para crianças e com muita qualidade. Hodiernamente, o cenário mudou drasticamente. Surgiram outros nomes, mas, em termos de produção, houve uma redução significativa. Na verdade, o mercado literário infantil está a carecer de um impulso no que diz respeito a publicações, porque o que se produz não chega sequer para atender ao mercado da capital e, por outro lado, os escritores que se dedicam a esse género literário continuam a ser muito poucos e sem incentivos. Angola não é só Luanda e, quando se produzem mil exemplares por edição (como é comum), tem-se a consciência de que vai abranger um número ínfimo de leitores.
Angop: Quanto custa a produção de uma obra literária infantil em Angola?
MCF – Não consigo quantificar o custo da produção de cada obra, mas posso adiantar que não é um trabalho de baixo valor. A edição de livros infantis é cara porque exige material de boa qualidade e cores, principalmente quando se trata de obras de capa dura. Lamentavelmente, o mercado nacional não dispõe de materiais para a execução gráfica. É quase tudo importado, começando pelo papel, eis um dos principais motivos da escassez de produção nesta fase de crise económica. Aquelas que outrora foram as principais editoras de livros para crianças e jovens, nomeadamente, a União dos Escritores Angolanos (UEA) e o Instituto Nacional das Indústrias Culturais e Criativas (INIC), antes INALD, deixaram de o fazer. O INIC apenas edita as obras vencedoras do Prémio Literário “Jardim do Livro Infantil”.
Angop: Que acções podem contribuir para o aumento da produção literária infantil?
MCF – Começo por dizer que escrever para crianças não é exercício fácil como muitos pensam. Esta escrita requer rigor e responsabilidade, uma vez que não é o mesmo que escrever para adultos, capacitados, em princípio, para poder separar o trigo do joio. Agora, quanto ao aumento da produção, temos ainda um logo caminho a percorrer, visando não só a quantidade, mas também, sobretudo, a qualidade, e aqui, honestamente falando, têm saído obras, particularmente aquelas de autores individuais, que deixam muito a desejar (...). As editoras que ultimamente vão colocando no mercado alguns livros infantis são a Porto Editora/Plural Editores e a Leya/Textos Editora. Aproveito a oportunidade para falar do prémio anual “Quem me Dera Ser Onda”, promovido pela UEA e patrocinado pelo Banco Sol. Na minha opinião, deveria ser revisto, dado que a intenção que esteve na base do concurso foi incentivar crianças e jovens a lerem e a escreverem, mas não os tornar, logo, à partida, escritores. Fiz parte do júri de um dos concursos e vi quão deficiente é a qualidade dos textos. Refazê-los, para tornar publicáveis, acho que não é ajudar ninguém. Quantos daqueles vencedores se tornaram efectivamente escritores? Talvez não fosse má ideia passar a acompanhar e a ajudar aqueles que demonstram vocação para a escrita, de modo a fazê-los desenvolver as suas capacidades. Presentemente, são deles os únicos livros, e acrescente-se de capa dura, que preenchem as bancadas da UEA. Viu-se, recentemente, no Jardim do Livro Infantil. Seria bom contemplar os meninos de forma mais moderada e motivadora e passar a utilizar parte dos valores doados para as edições e reedições de obras de autores já consagrados que hoje não têm como ver os trabalhos publicados. Estamos num momento de verdadeira estagnação.
Angop: Até que ponto a Lei do Mecenato pode ajudar, para que o livro chegue a um preço mais acessível ao consumidor final?
MCF – Obviamente que o Mecenato seria uma forma de impulsionar a produção literária em Angola. Foi criada a Lei do Mecenato e já se encontra regulamentada, faltando, em contrapartida, a sua implementação. É necessário que os agentes económicos tenham conhecimento das vantagens e dos benefícios fiscais que poderão usufruir, apoiando projectos de âmbito cultural e outros de interesse social. É tempo de ela ser conveniente e insistentemente divulgada, a fim de tais projectos saírem da letargia, alavancados pelo Mecenato, prática a que se assiste pelo mundo.
Angop: Que acções podem contribuir para o incentivo ao gosto pela leitura no seio da juventude?
MCF – A ingente tarefa é colocar o livro ao alcance dos mais novos, se possível dentro do círculo familiar, desde a tenra idade. Contudo, temos plena consciência de que poucas são as famílias que têm hábito de leitura ou mesmo reconhecem o quanto o livro é um instrumento de suma importância na formação mental das crianças, razão pela qual devem ser presenteadas com obras infantis, sem esperar pelo momento de entrada em jardins de infância ou escolas. O simples manuseio do livro e o ouvir contar estórias despertam a curiosidade e o prazer de ler, passando a tê-lo, no futuro, como companheiro indispensável. Perante esta constatação da ausência de hábitos de leitura dentro da família, o reverter da situação passa, necessariamente, por acções e iniciativas do Estado, em particular dos Ministérios da Cultura e da Educação: abertura de bibliotecas escolares, municipais, comunais e criar, por todo o sítio onde seja possível, espaços para a leitura. O objectivo é colocar o livro próximo dos pequenos, disseminando bibliotecas pelas escolas, formando leitores e formadores de leitores, assim como mediadores que orientem os pequenos nas opções de leitura e inculquem neles o grande prazer de ler. Deste modo, ao adquirir obras não só para os próprios filhos, os adultos garantem, certamente, o surgimento de potenciais leitores.
Ouvimos, muitas vezes, dizer que o livro é um produto caro, mas, paradoxalmente, quando há lançamentos de discos, vêem-se filas extensas de admiradores, incluindo crianças. Livros não se compram todos os dias nem todos os fins-de-semana, como acontece, geralmente, com os discos, e os mesmos podem ser repassados entre várias crianças, desde que aprendam a conservar e a devolver aos proprietários. Os discos e outros objectos (telefones, tabletes, produtos de marca…) chegam a ser mais caros que alguns livros, cujo preço pode partir dos Kz 100,00, a exemplo dos livros de bolso que o INIC comercializa. Portanto, não adquirir livros infantis, tendo como justificação o custo elevado, é, na minha opinião, um falso problema. Falta, sim, a cultura da leitura e a devida promoção de obras. A obra literária abre grandes horizontes e traça caminhos e metas que as crianças poderão seguir por toda a vida.
Angop: Aponta-se à nova geração muitas deficiências. Não acha que está na hora de os mais velhos promoverem mais acções que levem a camada infanto-juvenil a mudar de atitude perante a sociedade?
MCF - É um pouco complicado, porque, infelizmente, temos jovens que não aceitam, com muita facilidade, conselhos e reparos, já nascem a saber tudo! Os valores éticos e morais estão cada vez mais ausentes no seio desta camada da sociedade, cuja preocupação não é ser, mas, sim, aparecer sem olhar para os meios. Por exemplo, alguns procuram ajuda para os textos que escrevem, todavia, quando recebem alguns reparos e aconselhamentos, a ideia é pensar que não se quer que evoluam, que surjam novos valores. Isso é errado. Já recebi pedidos de ajuda de jovens, mas, após fazer as observações que achei convenientes, desaparecem simplesmente. O que muitos querem é que se refaça o trabalho, como se de uma co-produção se tratasse. Falta alguma humildade, e há pressa demasiada. Ninguém sabe tudo e todos nós aprendemos uns com os outros de uma forma ou de outra. A aprendizagem não tem limites. Eu continuo aprendendo todos os dias, até com as crianças e os jovens.
Angop: Se recuarmos para um passado não muito distante, lembrar-nos-emos de que tínhamos, no sistema de ensino, uma disciplina de História, da qual constavam textos sobre a História de Angola e os seus heróis. Hoje, o cenário é completamente diferente. O que fazer para se mudar este quadro?
MCF - Os Ministérios da Educação e da Cultura têm a obrigação de transmitir às crianças toda a informação sobre o país em que vivem. É imperioso introduzir nos manuais escolares textos sobre a História de Angola e da nossa literatura, escolhendo o que de melhor existe para integrar no Plano Nacional de Leitura do Sistema Geral de Ensino. Esta literatura vai ajudar as novas gerações a descobrirem não só o país como também contribuirá, grandemente, para o resgate dos valores e princípios morais que estão a perder-se a cada dia. É decepcionante ir a uma escola e apercebermo-nos de que nenhum aluno conhece nada sobre os autores nacionais. Perguntados sobre o que já leram, a resposta é quase sempre voltada para obras dos clássicos ocidentais, e o caricato é que nem sequer sabem dizer quem são os tais autores.
Angop: O que é necessário para ser escritor e, acima de tudo, um bom escritor?
MCF - Para se ser um bom escritor, implica, à partida, ser um bom leitor. É preciso ler, ler bastante e exercitar continuamente a escrita. O que, muitas vezes, falta aos candidatos a escritores é a leitura, a humildade e aceitar as críticas que podem ajudar no seu crescimento. Talento e imaginação sem trabalho nem esforço dificilmente resultam em bons buriladores da árdua arte da escrita.
Angop: Depois de “Os Padrinhos da Nazarena”, o que se segue?
MCF - Tenho vários contos dispersos em colectâneas e jornais, estou a pensar em recolhê-los numa colectânea.
Maria Celestina Fernandes
Maria Celestina Fernandes nasceu na cidade do Lubango, província da Huíla, a 12 de Setembro de 1945, fez os estudos primários e secundários em Luanda, tendo completado o ensino secundário no Liceu Salvador Correia.
É assistente social, formada pelo Instituto de Serviço Social “Pio XII”, e licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto.
Começou a carreira literária na década de 1980, com a publicação de trabalhos no Jornal de Angola e no Boletim da OMA.
A sua maior produção em prosa e poesia é dirigida à literatura infanto-juvenil, com destaque para as obras “A Borboleta Cor de Ouro” (1990, UEA), “Kalimba” (1992, INALD), “A Árvore dos Gingongos” (1993, Edições Margem), “A Rainha Tartaruga” (1997, INALD), “A Filha do Soba” (2001, Editorial Nzila), “A Rainha Tartaruga” (1997, INALD), “A Filha do Soba” (2001, Editorial Nzila), “O Presente” (2002, Edições Chá de Caxinde), “A Lagoa Misteriosa”(Edições Chá de Caxinde, 2013), "A Disputa entre o Vento e o Sol e Outras Histórias" (Leya/Textos Editora, 2016), "O Grande Encontro" (Porto Editora/Plural Editores, 2016), “Kambas para Sempre” (Editora Kapulana, 2017), entre outras. Tem obras traduzidas e premiadas. Foi três vezes nomeada para o Prémio Sueco “AstridLindgren” e recebeu, em 2010, o Diploma de Mérito do Ministério da Cultura, pelo seu contributo à cultura nacional.
É membro da UEA e da Associação Cultural e Recreativa Chá de Caxinde.